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Filme americano questiona a arbitrariedade da propriedade privada


O cozinheiro Cookie precisa do leite de uma vaca que não é sua em First Cow. Foto: divulgação.

First Cow é um filme de produção norte-americana que figura em primeiro lugar entre os melhores de 2021 de acordo com o ranking da revista francesa Cahiers du Cinema[1].


A película, que no Brasil ganhou o nada inspirado subtítulo de “a primeira vaca da América”, é de fato muito boa e merece atenção pela maneira como sua diretora, Kelly Reichardt, aborda o tema da propriedade privada e seu impacto na vida de indivíduos que estão no limite da marginalidade.


O enredo conta a história do padeiro Cookie (John Magaro) e do aventureiro chinês King-Lu (Orion Lee) durante a colonização do estado do Oregon, nas primeiras décadas do século XIX. No vasto território, caçadores e mineiros buscam subsistência em meio a um ambiente ainda selvagem.

Um fiapo de organização estatal está presente em um forte de fronteira, comandado por um Administrador Geral (Toby Jones), uma figura de autoridade, com gostos burgueses superficiais, que controla o comércio incipiente, os poucos militares e a hierarquia social. É dele a primeira vaca da região.


Pobres, sem trabalho e movidos por uma ambição pequeno-burguesa que inclui sonhos de caráter empreendedor bastante atuais como abrir um hotel ou uma padaria, os amigos decidem pegar o leite da vaca para fazer e vender bolinhos fritos aos habitantes do forte.


Na mistura entre oportunidade, oferta e demanda, a iguaria se torna um sucesso instantâneo. Eles recebem em troca pedras preciosas, notas de crédito e outras formas de pagamento que descrevem como é imprecisa e vaga a criação de valor.


A arbitrariedade se estende também aos ingredientes da receita. Em um dado momento, o Administrador Geral convida o padeiro a fazer um confeito francês de modo a impressionar um Capitão (Scott Shepherd) que acabara de chegar de Paris.


O doce necessita de dois ingredientes específicos: o leite quase inexistente e as frutas vermelhas, como mirtilo, encontradas aos montes nas matas. A receita torna-se assim um interessante exemplo de como o raciocínio capitalista, arbitrário e abstrato, se impõe.


Diante do fato jurídico de que a única vaca é propriedade do Administrador Geral, ordenhá-la sem permissão significa roubar leite, ato passível de punição. Por outro lado, colher mirtilos na floresta é legítimo porque, nesse momento, ainda não há um ordenamento jurídico - uma cerca - que legitime a terra como propriedade de alguém.


Com o simples exemplo de uma torta, o filme aponta como são absurdas, injustas e egoístas as relações sociais de produção. O trabalho, ou seja, a habilidade de Cookie em transformar os ingredientes em produto, com certeza o elemento mais importante da receita, fica relegado a segundo plano.


Wendy e Lucy


Kelly Richardt é uma diretora que tem abordado questões sociais há algum tempo. Em Wendy e Lucy (2008), o tema é semelhante a First Cow.


Na história, Wendy (Michelle Williams) é uma jovem operária que ruma de Indiana ao Alasca em busca de trabalho em uma fábrica de conservas. Ela tem bem pouco dinheiro, um carro e a companhia de sua cadela Lucy.


Ao chegar em uma cidade do Oregon, o carro quebra, gerando uma série de infortúnios que fazem ela perder Lucy. Os poucos recursos vão embora rápido, mostrando o quanto é frágil qualquer plano de melhoria para pessoas às quais é negada qualquer oportunidade.


Repressão a delitos como o roubo também estão presentes aqui. Outro ponto em comum é a presença de um traidor de classe. Por fim, vale ressaltar que há algo de Mona, personagem de Sem Teto, Nem Lei, de Agnès Varda, na trajetória de Wendy (leia aqui nossa análise).


É bom encontrar cineastas americanos, como Kelly Reichardt, que se mostram engajados em produzir filmes com temática política e social que questionam os valores capitalistas e os fundamentos abstratos que o sustentam, como é o caso da propriedade privada, em filmes como Frist Cow e Wendy e Lucy.


Streaming

First Cow e Wendy e Lucy estão no Mubi.

[1] O filme é de 2019, mas a revista leva em consideração quando ele chegou no território francês.

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