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Sr. Puntila e seu criado Matti une Brecht, Cavalcanti e Chaplin

Cena de “Sr. Puntila e seu criado Matti”, adaptação cinematográfica da peça de Brecht dirigida por Alberto Cavalcanti. Foto: Reprodução.
Cena de “Sr. Puntila e seu criado Matti”, adaptação cinematográfica da peça de Brecht dirigida por Alberto Cavalcanti. Foto: Reprodução.

O encontro entre o cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti (1897–1982) e o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898–1956) resultou em uma das mais importantes traduções do teatro dialético para o cinema: o filme Sr. Puntila e seu criado Matti (Herr Puntila und sein Knecht Matti, 1960), baseado na peça homônima. Filmado na Áustria entre 1955 e 1956, com roteiro revisado pessoalmente por Brecht, o longa é exemplo estético e político que tem a luta de classes como conteúdo e as técnicas do teatro épico como as bases de sua forma. 


Tudo indica que Brecht esteve bastante envolvido com a produção, tendo escolhido o elenco e também Cavalcanti para a direção. Em 1955, ele passou dias com Cavalcanti em Berlim Oriental, revisando os diálogos e orientando a estrutura dramatúrgica. Infelizmente, ele faleceu pouco depois do fim das filmagens. 


Para Gutemberg Medeiros, “ao adaptar a peça para o cinema, Cavalcanti realizou um gesto duplo: por um lado, permaneceu fiel às técnicas de distanciamento e à crítica de classe que caracterizam a obra brechtiana; por outro, inseriu essas ferramentas numa linguagem cinematográfica própria, usando recursos de montagem, mise-en-scène e ritmo narrativo que tornam o filme um experimento notável — ao ponto de ter sido descrito por alguns críticos como ‘mais brechtiano que Brecht”.


Curiosamente, a recepção crítica do filme também fornece indícios de que o efeito de distanciamento brechtiano foi bem-sucedido. Em texto publicado na Folha de S.Paulo, em 1998, o crítico Inácio Araújo discute o fato de o espectador não conseguir, em suas palavras, “acreditar no que acontece” no filme de Cavalcanti, observando que os diálogos, cenários e atuações expõem a natureza artificial da encenação. No entanto, essa “quebra da crença” é precisamente o objetivo central do teatro épico brechtiano: impedir a identificação passiva e convocar o espectador à análise crítica da realidade representada. Ao estranhar a obra por não corresponder aos códigos do cinema clássico, Araújo acaba confirmando — ainda que involuntariamente — que Cavalcanti foi bem-sucedido em traduzir para o cinema os mecanismos de distanciamento da cena teatral épica. O incômodo causado por essa teatralidade, longe de ser um defeito, pode ser lido como o próprio sinal de que o dispositivo brechtiano permanece ativo na tela.


A fábula da oscilação burguesa


Escrita em 1940 e encenada em 1949 pelo Berliner Ensemble, companhia fundada por Brecht na Alemanha Oriental após a II Guerra Mundial, a peça Sr. Puntila e seu criado Matti coloca no centro da trama a figura de Puntila, um proprietário rural finlandês que alterna entre dois comportamentos opostos: quando está bêbado, torna-se uma pessoa afável e humanista, mas, ao recobrar a sobriedade, volta a ser um patrão implacável. Em suma, ele recupera sua consciência de classe. Seu criado, Matti, é quem testemunha e ironiza essa metamorfose recorrente.


O ator alemão Curt Bois, que interpreta Puntila no filme, é o mesmo que havia protagonizado a montagem do Berliner Ensemble em Berlim Oriental. Sua performance carrega o peso simbólico de uma continuidade entre o palco e a tela, entre o teatro socialista da Alemanha Oriental e a experimentação cinematográfica europeia do pós-guerra. Bois já dominava a linguagem brechtiana de atuação,  centrada no estranhamento, na gestualidade crítica (gestus) e no distanciamento emocional.


Essa duplicidade de Puntila não é um capricho individual, mas uma metáfora da própria classe dominante, que flerta com a generosidade quando pode, mas sempre retorna à posição de controle. É nessa dialética que Brecht desenvolve sua crítica: a benevolência do patrão, como a caridade burguesa, é episódica, volúvel e ineficaz diante da estrutura de exploração que sustenta sua posição.


Matti, por sua vez, encarna o olhar lúcido do trabalhador que não se deixa enganar. Diferentemente de personagens proletários que sonham com ascensão ou reconhecimento, Matti compreende os limites dessa relação e, ao final, escolhe abandoná-la. O gesto de deixar o patrão é mais político do que sentimental: é a recusa de participar da farsa da conciliação.


Chaplin e Brecht: um diálogo crítico


É impossível não reconhecer, no argumento da peça, um desdobramento direto do que Charlie Chaplin já havia sugerido em City Lights (Luzes da Cidade, 1931). No clássico, o Vagabundo é amigo de um Milionário que se torna seu amigo quando está bêbado. Sóbrio, o rico o coloca em seu devido lugar. Essa relação tragicômica entre o pobre e o rico, mediada pelo álcool, já anuncia o tema central de Puntila: a impossibilidade estrutural da conciliação entre as classes. Brecht leva essa ideia adiante e aprofunda a questão, colocando-a no centro do enredo de sua peça. (escrevi sobre City Lights nesse link).


Um filme entre a fidelidade e a ruptura


Durante muito tempo, a recepção do filme de Cavalcanti foi ambígua. Parte da crítica o acusou de suavizar a política de Brecht, alinhando-se a um tom de comédia europeia. Mas essa leitura tem sido revista por estudos mais recentes. Além disso, o esforço de Cavalcanti em aplicar os princípios brechtianos no cinema mostra uma tentativa genuína de manter o distanciamento crítico no novo meio. 


A montagem, o uso das canções do compositor alemão Hanns Eisler (1898-1962) e a própria composição visual das cenas contribuem para o efeito desejado. Eisler, compositor marxista e colaborador de Brecht desde os anos 1920, criou uma trilha propositalmente dissonante e antissentimental, que age como contraponto irônico à ação, reafirmando o caráter épico do projeto.


A luta de classes exposta


O vínculo entre Puntila e Matti é a alegoria da luta de classes. Não se trata de uma relação pessoal, mas de uma estrutura social dramatizada. Puntila representa a classe dominante que, quando conveniente, se humaniza, mas cujo “estado natural” é a dominação. Matti, o proletário, não idealiza o patrão nem busca sua aprovação. Ele apenas compreende o sistema.


Essa lucidez do criado é o que diferencia o teatro épico do melodrama burguês. Brecht não quer que o público torça para que o patrão se torne bom, mas que entenda por que ele é estruturalmente incapaz de sê-lo. Matti não busca uma solução individual — ele aponta para a necessidade de transformação coletiva.


Sr. Puntila e seu criado Matti é um filme raro na história do cinema: produto de uma colaboração entre dois artistas comprometidos com a função crítica da arte, ele representa um momento em que o teatro épico encontrou no cinema não apenas uma forma de adaptação, mas um espaço de experimentação.


Ao radicalizar a fábula chapliniana, expor as engrenagens da dominação e manter o olhar crítico sobre a relação entre as classes, o filme de Cavalcanti honra Brecht e seu legado artístico naquele momento do pós-guerra.


MEDEIROS, Gutemberg. Do teatro ao cinema: Alberto Cavalcanti e Bertolt Brecht em Herr Puntila und sein Knecht Matti. Revista USP, São Paulo, n. 106, p. 107–116, set. 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/109122. Acesso em: 19 jun. 2025.


O filme está disponível no YouTube (com legendas em português). Esta cópia não é muito boa, mas, nesse link, é possível apreciar a fotografia colorida em detalhes.


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