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Dois filmes sobre a Revolução Russa


Poderosa imagem da Revolução Russa na visão de Sergei Eisenstein em Outubro (1927)

É interessante notar o papel de protagonista da Rússia em momentos de grave crise do capitalismo. Foi assim durante todo o século XX e agora, com a guerra na Europa e o lançamento do que parece ser um novo mundo multipolar, fica evidente a força do país para mudar os rumos da História. Parece que coube à Rússia, novamente, nos livrar de nazistas. E não estou falando somente dos da Ucrânia.


Por causa disso, escolhi dois filmes soviéticos como tema de meu texto esta semana. As duas películas têm como enredo a Revolução Russa, mais especificamente a batalha final que consistiu na tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques em São Petersburgo, sob o comando de Lênin, em 1917.


Trata-se de Outubro, dirigido por Sergei Eisenstein em 1927, e Lênin em Outubro, de Mikhail Romm, lançado exatos 10 anos depois. Ambos foram encomendas do governo à agência de filmes soviética, a Mosfilm, para marcar os aniversários deste acontecimento histórico. Assisti-los em conjunto é um exercício que permite entender os caminhos da Revolução a partir da maneira como os dois cineastas a representam em intervalos distintos. Há claramente um choque entre as duas versões e este se dá nas escolhas formais.


O enredo é praticamente o mesmo, com os mesmos personagens e a mesma conclusão: em ambos, a cena final é o discurso de Lênin celebrando a vitória sobre o governo provisório de Kerensky. Trotsky é citado nos dois filmes da mesma maneira: é ressaltada a sua hesitação em aprovar a insurreição de outubro, defendida veementemente por Lênin e que acaba sendo a proposta vencedora.


Em 1927, Eisenstein testavas os limites das suas teorias da montagem e exercitava o cinema como uma forma de representação revolucionária em sua essência. Para ele e muitos outros cineastas, o cinema era a forma de arte mais significativa do século XX.


Seu filme abre com uma dedicatória aos heróis daqueles meses em 1917 que culminaram nos eventos de outubro. Para ele, esses heróis eram o povo russo. Não há, em Outubro, o herói tipicamente burguês, protagonista da ação. Ao contrário, Eisenstein escolhe pessoas do povo para representar “tipos” revolucionários, criando um efeito que ele chama de “tipagem” em seu livro A Forma do Filme.


Estão ali representados os trabalhadores, os bolcheviques, as mulheres revolucionárias, os soldados, os burgueses, os traidores. Eles não têm um nome definido ou uma enredo individualizado. Mesmos os personagens históricos, como Lênin, Trotsky ou Kerensky, aparecem em momentos pontuais e não como foco da história. Eisenstein queria fazer da Revolução o seu personagem principal.


Além da “tipagem”, há ainda a montagem das cenas que são em sua maioria quadros elaborados com esmero e cuidado que ganham significados simbólicos e que buscam quebrar com a ilusão de representação do real, (ou seja, do que ideologicamente a burguesia define como real), para serem mensagens da luta revolucionária, seja nos gestos dos atores, seja na composição frenética de armas que são jogadas no chão, por exemplo. Eisenstein usa as imagens em conflito para expor contradições.


Lênin em Outubro (1937) coloca a figura do líder russo no centro do drama


Em seu filme, Romm apenas recria o enredo de Eisenstein, modificando as escolhas formais do último. Para começar, como o próprio título indica, o enredo foca na figura de Lênin e exalta seu heroísmo na condução da Revolução Russa. A película simplesmente segue as regras do drama burguês (como define Peter Zondi). Lembra o cinema comercial que era produzido por Hollywood naquele momento.


Obviamente que Romm sabia o que estava fazendo e é possível inferir que ele deve ter conversado com Eisenstein a respeito. Em 1937, o stalinismo e a burocracia estatal já perseguiam todos que eram contra suas decisões.


No campo das artes, começava a ser implantado o que ficou conhecido como “realismo socialista”. As discussões sobre a forma estabelecidas por cineastas, dramaturgos e artistas no âmbito do modernismo russo começaram a ser consideradas supérfluas, difíceis de serem compreendidas e “inimigas o povo”.


Por isso a percepção, ao assistirmos Lênin em Outubro, de que há algo americano na sua abordagem do tema. Mesmo assim, Romm tenta escapar da armadilha, adicionando momentos de ironia e de humor a um assunto que deveria ser abordado com certa reverência. Mesmo a figura de Lênin parece estereotipada e superficial. Há uma cena específica para o culto à sua personalidade.


Em outro momento, os bolcheviques, dentro do Palácio de Inverno, se deparam com estátuas e obras de arte importantes. Um personagem alerta seus camaradas: “aqui há obras de arte de valor inestimável, precisamos protegê-las como aquela estátua de Apolo”. Um camarada responde: “E qual das estátuas é Apolo?”. Para ouvir: “Não importa. Usem suas facas e não tiros”.


Neste contexto, o filme de Romm deve ser visto como sintoma do momento histórico e das condições de sua produção dentro das transformações da Revolução Russa ao completar 20 anos. A película nos deixa perceber que o caminho traçado não era mais tão revolucionário como havia sido anos antes. As escolhas formais de Romm têm um certo simbolismo e didatismo invertidos.


Hoje, a Rússia, um país capitalista, volta-se para as suas próprias contradições e para sua própria História para se defender das imposições nefastas do decadente e perigoso imperialismo estadunidense. E, como protagonista, parece estar mudando o mundo novamente. Saberemos com mais certeza onde isso vai nos levar em breve.


Streaming

Lênin em Outubro e Outubro estão no YouTube.


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