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Carla Dórea Bartz

Trumbo e a repressão anticomunista nos Estados Unidos


Atacado pelo Estado, escritor e roteirista Dalton Trumbo ganhou dois Oscars usando pseudônimos. Imagem: divulgação.


Trumbo: Lista Negra (Trumbo, 2015), filme de produção estadunidense dirigido por Jay Roach, é um poderoso drama hollywoodiano sobre o período de caça aos comunistas neste país logo após o fim da II Guerra Mundial.


Na história, um grupo de roteiristas, que mais tarde ficaria conhecido como os “The Hollywood Ten”, é acusado de comunismo por uma comissão de investigação de atividades antiamericanas da Câmara dos Deputados (House of Un-American Activities Committee – HUAC).


O objetivo do filme é mostrar como a perseguição arbitrária do governo foi, na verdade, um ataque à liberdade de expressão e de livre associação e, portanto, um ataque à própria democracia.


A comissão foi apenas uma das iniciativas parlamentares, com apoio do executivo, contra opositores de esquerda nos Estados Unidos no período que vai do final da década de 1930 até a década de 1970.


Nos anos 1950, o senador republicano Joseph McCarthy acusou de atividades contra a nação centenas de cidadãos, que tiveram suas vidas destruídas. O fenômeno ficou conhecido como macarthismo.


A HUAC, fundada em 1938, não ficou atrás. Nos dois exemplos, percebemos a mesma forma de ação: o Estado perseguiu indivíduos por suas posições políticas, consideradas criminosas e de ameaça ao país e, portanto, passíveis de punição. Muitos americanos foram presos, exilados ou morreram por conta desta arbitrariedade.


A propaganda e o apelo a um sentimento nacional foram fundamentais para que as ações pudessem acontecer. Neste caso, os estadunidenses compraram gato por lebre: autorizaram o Estado burguês capitalista a eliminar aqueles que ameaçavam a ordem por lutarem por uma sociedade mais justa.


A ação do filme começa em 1947 e é uma biografia centrada na figura do escritor e roteirista Dalton Trumbo (1905-1976), vencedor de dois Oscars e comunista assumido. No filme, ele é vivido pelo ator Bryan Cranston, o mesmo da série Breaking Bad.


Na história, Trumbo é denunciado por companheiros e vai preso. Ao sair, os estúdios lhe negam trabalho e ele é obrigado a escrever na clandestinidade, sob pseudônimo. Família, filhos e amigos também sofrem com a situação.


É interessante notar as datas. A HUAC foi fundada na véspera da Guerra, quando Hitler já era chanceler alemão havia pelo menos cinco anos. Suas atividades aconteceram durante todo o conflito e a perseguição em Hollywood começou apenas dois anos após o fim da Guerra.


No início do filme, ficamos sabendo que milhares de cidadãos e centenas de trabalhadores da indústria cinematográfica eram filiados ao Partido Comunista dos Estados Unidos na ocasião. Esta adesão não só estava ligada ao esforço contra os nazistas, mas também refletia a consciência política dos americanos em um período em que havia movimentos operários em todo o mundo.


O nazismo foi uma reação a esses movimentos: destruiu uma possível insurreição dos trabalhadores alemães e avançou contra o comunismo soviético, apesar do stalinismo já tê-lo comprometido. O avanço de Hitler no leste europeu foi um massacre, só derrotado pelo Exército Vermelho após milhões de mortes (leia aqui nossas análises dos filmes Vá e Veja e O fascismo de todos os dias).


Podemos inferir que a reação do Estado americano foi na mesma direção da do Terceiro Reich. Foi neste contexto que a burguesia americana afirma até hoje ter lutado contra os nazistas. Em seu próprio país, manipulou a opinião pública e tratou de eliminar pela raiz qualquer ameaça à ordem capitalista dominante. Mais, no mesmo período, não hesitou em jogar duas bombas atômicas na população civil do Japão.


Após a Guerra, assumiu de cara limpa seu extremismo de direita no lugar da Alemanha, sempre escamoteado como defesa da liberdade e dos valores democráticos. Quando a perseguição arrefeceu, o estrago já era grande. No filme, há uma cena que particularmente nos interessa e que nos ajuda a entender o tamanho deste estrago.


Estamos em 1960 e, neste momento, Trumbo começa a reverter a situação entre seus pares na indústria de cinema. Num dado momento, sua filha adolescente Niki (Elle Fanning) precisa levar um importante roteiro a um estúdio, mas se recusa.


Ao longo dos anos, diante da pressão, o roteirista tratou os filhos e a esposa como se fossem seus empregados. Niki protesta e mostra ao pai que ele está sendo o oposto do que sempre pregou: explorador e autoritário.


Ao colocar os personagens em ação, Roach usa a cena para mostrar uma mudança política geracional. Niki não quer fazer a entrega porque tem uma reunião com ativistas pelos direitos civis, ou seja, pelos direitos dos negros e das mulheres, movimentos que marcaram a década de 1960.


A encenação, aderente com esta mudança, mostra Niki como uma feminista. Estabelece que a luta revolucionária e de classes, antiquada e associada ao pai, ficou para trás, dando lugar à luta reformista e pela inclusão social na figura “moderna” da personagem feminina.


Nascia ali, no entanto, o identitarismo moralista e pequeno-burguês que presenciamos nos dias de hoje. Em seu texto “Periodizando os anos 60”, o teórico norte-americano Frederic Jameson explicou o problema:


A este respeito, a fusão da AFL (American Federation of Labor) e da CIO (Congress of Industrial Organizations) em 1955 pode ser vista como "condição de possibilidade" fundamental para o desencadeamento da nova dinâmica política e social dos anos 60: essa fusão, que foi um triunfo do macarthismo, garantiu a expulsão dos comunistas do movimento operário norte-americano, consolidou o novo contrato social apolítico entre os empresários e os sindicatos norte-americanos e criou uma situação em que os privilégios da força de trabalho masculina e branca asseguram-lhe a precedência face às demandas dos trabalhadores negros, das mulheres e de outras minorias. Estas últimas não têm, portanto, lugar algum nas instituições clássicas de uma política mais antiga da classe trabalhadora. Estão assim "liberadas" da classe social no sentido carregado e ambivalente que Marx dá à expressão (no contexto dos enclosures, por exemplo): são excluídas das antigas instituições e ficam "livres" para encontrarem novos meios de expressão política e social.”


Nos anos 1950, a repressão foi tão forte que esmagou os sindicatos e acabou com o Partido Comunista. Na citação de Jameson, ele descreve uma situação de total capitulação: em nome dos chamados "valores nacionais", algo de que Hitler usou e abusou, o maior sindicato dos trabalhadores e o maior sindicato patronal se uniram. É algo como se a CUT se unisse à FIESP. (Inimaginável, porém, possível: alguém pensou em Alckmin e Lula?) Foi o que aconteceu nos Estados Unidos.


No filme, de maneira complacente, isso é mostrado como a rebeldia empoderada de uma feminista adolescente.


De concreto é que estamos há quase 60 anos deste fato e o identitarismo moralista não conseguiu resolver as contradições de classe. Porém, muitos ainda acreditam, de pé junto, que tudo é uma questão de políticas humanitárias de inclusão social.


Faz 60 anos que a inclusão não consegue incluir. Pior, o identitarismo, exportado para o mundo todo como único horizonte de luta política, está cada vez mais parecido com seu algoz: autoritário e armado com o cancelamento de opositores e de artistas, com a correção dos discursos, com a reescrita da História e com a pregação a favor dos limites da liberdade de expressão.


O capitalismo, que no fundo financia tudo isso, continua firme e forte, levando todos nós, sem exceção, para um buraco sem fim.


Streaming

Trumbo pode ser assistindo de graça na plataforma SescDigital #CinemaemCasa.


O texto citado é:

JAMESON, Fredric. "Periodizando os anos 60" In: Pós-Moderno e Política. Org.: Heloísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro, Rocco, 1992, p. 86-87.

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